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quinta-feira, 2 de abril de 2020

Mensagem para Você ou Kethleen Kelly versus Amazon?

Olá leitores!

Ontem, reassisti ao filme Mensagem para Você e fiquei surpresa ao enxergar as críticas que esse filme contém e que me passaram batidas até então. É sobre essas críticas que escrevo por aqui hoje. 

Kethleen Kelly herdou a charmosa "Loja da Esquina" de sua mãe, Cecília, e como podemos ver, é uma pequena e adorável livraria especializada em livros infantis, onde se pode encontrar livros feitos a mão e onde a proprietária se transforma em uma encantadora contadora de histórias nos finais de tarde. A livraria de Kethleen é um sucesso e seus clientes, adultos e crianças, se relacionam com ela de modo pessoal. 

Confesso que meu coração livreiro suspira ardentemente por cada pedaço da vida de Kethleen: a livraria perfeita e seu público adorável, o apartamento simples e de cores suaves, o namorado lindo que adora máquinas de escrever, o bairro de Uper West Side, o canto nova-iorquino da arte, do cozy e do hygge! O que pode ser mais perfeito? 




No entanto, diante da Loja da Esquina e aos olhos de Kethleen (e de seu público), o futuro se impõe, implacável. Uma Fox Books, a fictícia mega store livreira com amplos ambientes, poltronas fofas, descontos agressivos e seu cappuccino, se prepara para abrir as portas. 

O proprietário, Joe Fox, é filho e neto de empresários milionários. Para homens como eles, a questão não é dinheiro em si, mas a disputa. Na cena em que eles falam sobre concorrentes indo à falência, tem-se a impressão de que eles poderiam estar falando sobre uma corrida de cavalos com a mesma descontração. Joe é um connoisseur de pessoas e afirma, sem pestanejar: "...vão nos odiar no começo, mas vamos conquistá-los no final". Em seguida, ele repete a receita para o seu sucesso: vendendo livros baratos e estimulantes, aprovados por lei. Lhe lembra alguma outra mega store livreira da vida real? Continuemos.

Sem constrangimento, Joe Fox quer a frase "O Fim da Civilização como Você a Conhece" precedendo o anúncio da abertura da loja. Fox é o futuro porque é assim que o futuro se apresenta: ele determina que a vida que você conhece está com a validade vencida e você que lute para se adaptar. 

E enquanto o seu mundinho vem abaixo, a doce Kethleen suspira por um desconhecido com quem mantém, em segredo, correspondências românticas (e muito inocentes) por e-mail.  

Os três funcionários de Kethleen são uma tia idosa e dois jovens que são o retrato da apatia. No entanto, é por Kethleen que sua tia Birdie sai de casa e se ocupa, é por ela que seus funcionários levam a vida que desejam e é através dela que as crianças de Uper Side West mantém um lugar de fantasia e imaginação, onde aprendem a como usar um lenço de verdade. A loja em si é como um baú do tesouro, para clientes e para a própria Kethleen. 

Ao encarar a abertura de uma Fox Books diante da sua lojinha, Kethleen simplesmente diz: "Não vai nos afetar em nada. É grande, impessoal, tem estoque demais e funcionários ignorantes". Mesmo quando seu vendedor a lembra que eles dão descontos, ela não se dá por vencida, pois crê piamente que o seu bom atendimento supera o poder dos descontos. E fecha o diálogo com um pensamento inacreditavelmente ingênuo, dizendo que aquele será o "bairro das livrarias"! Claramente Kethleen não percebe o futuro. Ela acredita que o que a Fox Bookstore não tiver, ela terá, mas não compreende que eles terão TUDO o que ela não tem e que isso significa, em outras palavras, fa-lên-ci-a. 

Kethleen vende livros, experiências e memórias, mas não é uma empresária (não uma com gosto de sangue, como Joe Fox, por exemplo). Não é a toa que seu namorado jornalista a descreve como "um junco solitário elevando-se e balançando corajosamente nas areias corruptas do comércio". Bingo. 

Kethleen oferece o que tem: uma vida pequena mas valiosa, com bons amigos e sua doçura consegue, de fato, quebrar a acidez de Joe Fox, que começa a entrar em crise ao se dar conta dos conceitos que carrega dentro de si. 

Falando em Joe Fox, começamos a entender um pouco dessa criatura em crise quando damos uma boa olhada em sua vida pessoal: sua família é um novelo genealógico e Joe Fox é uma pessoa criada para vencer, não para se emocionar. Apesar de ser empresário do ramo livreiro, não se vê livros em sua casa (coisa que o apê de Kethleen mostra, ostensivamente) e parece apenas suportar a namorada, uma jovem editora que parece uma versão americana de Narcisa Tamborindeguy. 



Há um diálogo importante entre Joe e seu pai, enfadado e separado pela enésima vez, que parece, finalmente, ligar o sinal amarelo na cabeça do rapaz. 

Fox Pai: "...Só preciso encontrar outra pessoa."

Joe: "É fácil achar a única pessoa no mundo que enche seu coração de alegria."

Fox Pai: "Não seja ridículo. Nunca encontrei alguém que correspondesse a essa descrição. Você já?"

É esse trecho do diálogo entre pai e filho que entendemos o motivo pelo qual o guia moral de Joe Fox seja o filme O Poderoso Chefão (que é uma obra-prima mas como guia moral fica puxado) e tratem da falência dos concorrentes com total indiferença.

Pessoas como os Fox não têm consideração com nada nem com ninguém, muito menos com o negócio alheio e seus significados e símbolos afetivos. Afeto não é um idioma que essas pessoas compreendem. Para um empresário como Fox, tanto faz ser dono de livraria ou um açougue. A questão é a disputa, é ganhar o jogo. É a única coisa que os faz sentir vivos e lhes dá sentido. 





Esta cena é muito boa. Joe leva sua tia e seu irmão para passear e ocasionalmente, encontram a "Loja da Esquina", bem na hora em que Kethleen está contando uma história para os seus pequenos clientes. Ali temos outro sinal da lição que Joe vai aprender com Kethleen, quando ele leva uma alfinetada de um vendedor que lhe explica que o livro que têm em mãos tem colagens feitas à mão. Joe pergunta "Por isso ele custa tanto?" e o rapaz prontamente lhe responde "Por isso ele vale tanto".  

Logo depois, Kethleen conhece os Fox e o diálogo que se segue deixa Joe boquiaberto. Kethleen explica que sua mãe fora a proprietária anterior e que ela não vendia livros, simplesmente, mas ajudava as pessoas a se tornarem quem elas iriam ser depois. 

"Quando uma criança lê um livro, ele se torna parte da sua identidade de uma maneira que nenhuma outra leitura na vida se tornará".

Se Joe Fox tivesse um pingo de decência, teria caído desmaiado imediatamente! Ao final da visita àquele paraíso livreiro, onde o clima de Natal parece ter se instalado ali permanentemente, Joe repara na charmosa sacolinha de tecido que acompanha as suas compras - e na cena seguinte, de abertura da Fox Bookstore, vermos as mesmas sacolinhas, com sua logomarca. 

E assim, o inevitável acontece: em uma semana, a Livraria da Esquina deixa de ganhar 1.200,00 dólares e acaba fechando as portas. 

Mas o que mais chama a atenção aqui é a solidão de Kethleen. 

Seus funcionários começam a debandar, sua tia idosa encara a coisa toda sem apego nenhum e seu namorado resolve que esse momento é perfeito para romper com ela e flertar com uma âncora de tv. Kethleen sofre por que sente que é a única a lamentar de fato pelo fechamento da Loja da Esquina. Ela é a última a sair. E o expectador a acompanha com o coração pequenino, pois a cena daquele paraíso, outrora coloridinho e cheio de clientes risonhos, agora vazio e às escuras é de partir do coração. 


Joe fica perplexo ao saber que aquela livraria insignificante tenha tido uma proprietária tão encantadora como Cecília Kelly, mãe da igualmente encantadora Kethleen, e que seus clientes se lembrem dela e agora levam os próprios filhos. Cecília e Kethleen emocionam as pessoas. 

Já imaginaram alguém como Joe Fox parando suas atividades no fim da tarde para contar historinhas aos seus pequenos clientes? Fox é o típico empresário que atravessa a própria loja rumo ao seu escritório sem olhar para os lados, sem curiosidade ou emoção, sem olhar nos olhos de um único cliente, sem cumprimentar aqueles que fideliza. E é por isso que, quando Kethleen consegue dizer um desaforo à altura da perturbação que Joe lhe causa ("Eu vendo livros; você não passa de um terno!"), ele se cala. Numa pequena frase, Kethleen define Joe Fox. 

A constatação de Joe Fox sobre como ele está conduzindo a sua vida, o manda direto à porta de Kethleen, apaixonado e arrependido e o resto é fechamento de um filme romântico: ela vai ter que perdoar o mocinho pelo pequeno deslize de ter levado seu negócio maravilhoso à falência. 

Quem diria que um filme romântico e singelo daria tanto o que pensar, leitores? 

Do alto da minha ainda incipiente experiência no universo louco da literatura, onde a arte se esquece do business frequentemente e paga alto por isso, vejo Mensagem para Você com outros olhos agora. O triste cenário das livrarias encantadoras que fecham as portas diante de mega stores impersonalizadas mas com descontos e mimos também se é percebido em outras searas, como na moda, por exemplo. O fast fashion é um conceito que, para todos os efeitos, atende da forma mais democrática possível os anseios dos consumidores. No entanto, no subterrâneo mundo de fabricação em massa, vemos as mega stores fashionistas mais ocupadas em descobrir novos pontos de trabalho escravo pelo mundo e lustrando sua blindagem jurídica contra fiscalizações "maldosas" do que pensando na Moda, de fato. 

Nos sentimos tristes quando uma livraria em nossa cidade fecha as portas mas não nos sentimos constrangidos por irmos até lá, fotografar as capas dos livros desejados e depois comprá-los numa Fox Bookstore. 

Será que o problema é só falta de grana? Ou nos relacionamos melhor com a mega store porque estamos ficando mais confortáveis com sua ausência de significados? 

Isso é um caso a se pensar. 

Beijos, 


Mariana Mendes 💖











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