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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Entrevista com Rui Cruz

Olá leitores!

Esse mês trago uma entrevista mara com uma estrela do stand up português!

Rui Cruz faz 34 anos no próximo Halloween. Esta entrevista rolou há dois anos, quando nos encontramos em Lisboa para um papo de 1 hora para este blog. O papo, que começou as 17hs, só acabou as 22hs e o blog, que deveria ter sido lançado há um ano, finalmente está no ar e vem trazer um pouco da história de um dos nomes mais bacanas do cenário de comédia e stand up português.

Cruz é comediante, roteirista e músico. Formou-se em Arqueologia e chegou a ter sociedade em uma empresa de arqueologia, onde descobriu, dentre outras coisas, uma pedra com arte rupestre protostórica da Idade do Bronze (Proto-História é o período do desenvolvimento da humanidade que precede o surgimento da escrita, mas que foi possível conhecer por ser descrito em algumas das primeiras fontes escritas; praticamente coincide com a Era dos Metais.). No entanto, a veia natural para o humor falou mais alto – ainda bem!

Toca: Como o humor acabou se tornando profissão?

R.C.: O humor sempre fez parte da minha vida. Meus pais são pessoas engraçadas e o humor está na minha vida desde criança. Aos 9 anos, comecei a escrever humor pra mim – o meu pai deu-me o livro “Sem Penas”¹ do Woody Allen e tão logo o li, comecei logo a escrever pequenos contos. Depois de já ter o curso de Arqueologia concluído, já contando com 25 anos e sendo sócio de uma empresa de arqueologia, me percebi cansado – não do trabalho com a arqueologia em si, mas da parte burocrática e da parte da corrupção que há no meio². Então, acabei fazendo um curso de escrita criativa que encontrei pela internet. Tirei 15 dias de férias da empresa e me dediquei a isto. Ao final, gostei tanto da experiência que dei-lhe a minha parte da empresa e comecei a fazer, do humor, um meio de vida. Estou na estrada há 7 anos...já passei tempos maus, já passei tempos bons, mas não trocava por nada. 

Rui Cruz em seu espetáculo Cego, Surdo e Mudo

Toca: Quem te influenciou mais, nesse processo de se tornar humorista?

R.C.: Eu tenho muitas influências de outros comediantes, como Bill Leaks e George Calin, que são, talvez, minhas melhores influências...mas também tenho muitas influências literárias e musicais, desde o Luís Pacheco, os livros e filmes de Woody Allen, Voltaire...e mesmo na música, Banda do Cavaco, Beatles, Type O Negative, com aquele humor sarcástico. Então, as minhas referências vêm de muitos lados, ao contrário da maior parte dos comediantes da minha geração, as minhas referências são mais espalhadas. Talvez por isso a minha comédia seja um bocado diferente do que fazem os meus contemporâneos.

Toca: E sobre as participações que você já fez?

R.C.: Fiz muitas participações...fiz uma com o Rui Sinel de Cordes, que é um comediante português bastante conhecido...escrevi quase todos os programas dele...e fiz participações com ele ao vivo, desde o espetáculo Anjos Negros, que é um trabalho que tive com ele e o Paulo Almeida (também humorista), e depois tenho participações na televisão...tenho feito coisas em todos os canais...escrevi textos humorísticos para muitos programas...programas de culinária, ou seja, participações já fiz em quase tudo.

Toca: (*risos*): E como é isto? Você diz qual o prato do dia vai ser mostrado no programa naquele dia?

R.C.: Sim! Escolho com o apresentador as receitas do programa e depois vou fazendo histórias para cada receita, pesquisando suas origens, ingredientes...

Toca: Quem diria?!

R.C: (*risos*). Nunca ninguém diz, não é?

Toca: Nos teus vídeos da série Tão Real que Dói – aliás, teremos continuação? - ...

R.C. Sim, deveremos voltar em Setembro, em princípio!

Toca: ...o seu gato é uma presença constante. Conte-nos sobre essa parceria.

R.C.: (*risos*) Epá, o meu gato é das coisas que mais gosto no mundo, mesmo. E depois, ele é buè camera friendly! Ele é muito fotogênico e muito bonito na câmera...e toda gente sabe que gatos dão likes. Logo, juntei o útil ao agradável, que é tornar o meu gato famoso – que acho que, em certo ponto, já é mais famoso do que eu - e levar likes pros vídeos. Teve uma miúda que mandou uma mensagem  a dizer que só via os vídeos para, no final, ver o gato.

Toca: Que adorável!

R. C.: (*risos*)...portanto, acho que tive uma boa jogada.

Toca: Eu achei que foi um highlight na vida dele quando ele sumiu, né? (Há mais ou menos um ano, o humorista lançou uma campanha desesperada na internet para que as pessoas o ajudassem a encontrar o gato que fugiu e aparentemente havia se perdido. Foram dois dias de buscas aflitas até que o fujão foi encontrado)

R.C.: Putz, aquilo foi um pânico! O pôster dele de “Procura-se” está colado na parede da minha sala. Foi uma busca aflita de 48 horas mas no fim, ele estava no telhado.

Toca: Como é o nome dele?

R.C.: Majin Thoth! Majin é porque ele tem o “M” na cabeça como o Boo do Dragon Ball, então ficou “Majin Boo” e “Thoth”, foi por causa da minha ex-namorada que foi quem o trouxe para me chatear, o apelidou com um nome egípcio que ainda por cima é um deus que sem sequer tem cara de gato, o que não faz sentido, é só parvo. Mas esse nome ficou giro, ele gosta do nome.

Toca: Sim, acho que combinou tanto com ele...ele é tão...

R.C.: ...”psicopata” é a palavra certa...

Toca: Ele tem uma dignidade, né?

R.C.: (*risos*) Como Hanibal Lecter!

Toca: O humor se relaciona com temas sérios? Como você trabalha a relação “Dizer coisas engraçadas” X “dizer o que as pessoas precisam ouvir”?

R.C.: Eu nunca penso naquilo que as pessoas precisam ouvir. Da parte da comédia, nunca. Eu faço aquilo que, normalmente, me faz rir e depois as pessoas ou gostam ou não gostam, eu nunca vou à procura de público. A arte, para mim, não é uma cena que vais atrás de fazer para agradar alguém. Arte é aquilo que vais fazer porque precisas fazer. É uma coisa tua. As pessoas gostam ou não. A partir do momento em que tu fazes, já com o resultado na cabeça, deixa de ser arte, passa a ser um negócio e eu nunca fui por aí. Agora, fazer comédia com coisas sérias...eu acho que só se deve fazer comédia com coisas sérias. A comédia tem muito dessa responsabilidade social, acho eu, de tirar o peso a coisas que já são pesadas e é isso que também chateia as pessoas, tirares o peso e a carga negativa a coisas que são próximas ou que lhe tocam, de alguma forma. Parece que, quando tu tiras peso de coisas negativas, tu estás a desrespeitar a situação e não, estás só a tirar peso. A vida é tão efêmera, nós andamos cá 80 anos, mais ou menos, é tão pouco tempo! Para que estar a pôr mais pensamentos negativos à cabeça quando tu podes brincar com eles e lidar com eles de modo mais fácil? É isso que eu penso quando faço a minha comédia. Muito da minha comédia é autobiográfica e psicológica – tem quase uma função terapêutica para mim, pois falo de muitas coisas como relações que acabaram, é uma maneira de expiar coisas que me enervam ou que eu não percebo, é minha válvula de escape. É bom quando alguém me ouve e se sente reconhecido ali. Desde criança, meus pontos de brincadeira foram coisas que, normalmente, não eram para brincar. É algo que está no sangue e acho que essa é a forma como eu me relaciono com o mundo. E acho que é importante fazer piadas com temas tabus, porque as vezes, não coisas que não se falam, por serem tabus, e quando tu brincas com eles, nem que tenhas uma recepção negativa, estás a trazê-los à tona. Às vezes, trazes a atenção das pessoas para coisas que elas não se lembram ou não falam e isso acaba sendo positivo, ainda que te traga ódio também.

Toca: Há um vídeo interessante onde respondes ao teu colega, Diogo Batáguas (humorista) que já te chamaram de “Conchita”. Rui Cruz é um homem vaidoso?

R.C.: (*gargalhada*)

Toca...há vídeos teus em que apareces com batom e vestidos.

R.C.: Sim! Já fui muito vaidoso, muito metrossexual. Maquiagem, sempre gostei, desde garoto. Meus pais sempre acharam piada ter um filho razoavelmente diferente. A roupa feminina é muito legal!

Toca: O humor negro é uma provocação? Quem é a tua audiência? Você a conhece?

R.C.: Eu conheço um bocado da minha audiência. Tem a turma que leva as coisas meio a sério...o meu humor varia do humor social ao humor negro – acho que sou o mais ácido dos comediantes e acho que sou, no palco, muito próximo do que sou na vida fora dele – sou sarcástico e acaba que o meu show acompanha o tom.

Toca: Eu não acho que seja tão ácido.

R.C.: Não achas?

Toca: Não.

R.C.: Mas sou ácido nas minhas observações e sou amargurado, vá. Sou aquele velho ranzinza que nós falamos a bocado...

Toca: Bom, vai ver o seu tipo de humor me soa mais familiar do que para as outras pessoas...


R.C.: Se calhar tu acabas sendo um bocado parecida comigo nesse aspecto e por isso tamos a dar bem, tás a ver? Quando sinto empatia, sou simpático, quando não, sou uma besta.

(P.S. Ele foi um doce de pessoa.)

Toca: Ainda sobre o público, como você percebe as pessoas que consomem o teu material?

R.C.: Tenho basicamente 3 tipos de público: aquele mais erudito, que gosta muito de ler, que gosta de boa música e acabam encontrando eco nas mesmas referências culturais que eu tenho; o bruto, que não percebem que uma piada de humor negro é só uma piada e acham que estou a justificar suas posições ofensivas, que é só ridículo e depois, tenho um público desajustado socialmente, pessoas como eu, que não se enquadram na sociedade, que não tem grupos específicos e que sentem que este mundo de aparências não faz sentido. O meu público é uma mistura destas três categorias.

Toca: Isso é curioso, porque são completamente diferentes e talvez, se interagissem, brigassem o tempo todo.

R.C.: Ah sim, isso acontece o tempo todo! 















Rui Cruz participando do programa Maluco Beleza


Toca: Porque algumas pessoas se sentem tão ofendidas com o humor negro? Há uma forma madura de lidar com as agruras sociais sem ofender ou não há essa preocupação específica no humor negro?

R.C.: Qualquer piada vai ofender alguém. Se eu fizer uma piada de loiras, as loiras ficarão ofendidas. O humor negro ofende mais porque foca em temas que são sensíveis: câncer, violações, AIDS, morte, tragédias. O que é que ofende? Ofende aquilo que é mais próximo de ti. Não é o tema em si, mas o que te é próximo. Agora, tens na internet movimentos de massa e consegues criar uma onda de respostas. Se és uma pessoa famosa e dizes que se ofendeu com determinada coisa, tens aí 100 pessoas que a seguem e que vão partir pra cima, muitas vezes sem nem saber direito o porquê.

Toca: No Brasil, alguns humoristas se viram obrigados a se desculpar por causa da repercussão negativa de algumas piadas ou tiveram projetos boicotados. Como lidar com a crítica que chega a este nível?


R.C.: Aqui em Portugal também já tivemos alguns problemas com humoristas. Eu sou apologista de nunca pedir desculpas. Nunca vou pedir desculpa por uma piada. Se a piada correu mal, correu mal. Nenhum artista faz isso. 

Toca: “Algumas questões”. O que te incomoda mais atualmente nos comportamentos ou no estilo de vida?

R.C.: A falta de referências é uma coisa que me assusta muito. Esta nova geração tem zero referências do passado, como se ele não existisse. Quando tens uma geração que não tem referência de passado, tudo  o que foi de mal vai voltar a acontecer e as próprias referências culturais são algo que me dão ataques de pânico. Eu penso “se isto existe é porque tem audiência e se tem audiência é porque há milhares de pessoas que acham que isto é legal”. Eu vivo em pânico e irritação quase 90% do tempo. A minha geração já começou a ser assim...acho que a geração anterior, a última grande geração de coragem, de força de vontade...a minha geração já começa a se queixar de tudo e a querer tudo de mão dada...

Acho assustadora a falta de cultura e o louvor à falta de cultura. No  meu tempo havia o burro da turma, que era um gajo popular mas toda gente sabia que era burro. As pessoas o achavam engraçado e só. Hoje o burro da escola é o gajo mais legal, é o gajo que diz “Nunca li um livro e não quero saber de política” e é aplaudido por isso. Hoje vais ao Twitter e vês garotos dizendo frases rasas e estas frases são retwitadas 40 mil vezes! E as garotas a dizerem que é com este tipo que querem se casar!

Toca: Formam um casal legal, o burro da escola e a garota desmiolada.

R.C.: Mas esses depois vão procriar e daqui a uns anos, temos o Idiocracy! (*risos*) Porque gente como nós não tem filhos e estes gajos têm uns 8 e lá está o Idiocracy! 

Toca: Você é uma pessoa que se incomoda com algumas questões da vida moderna...

R.C.: (*risos*) Todas!

Toca: “Algumas questões”. O que te incomoda mais atualmente nos comportamentos ou no estilo de vida?

R.C.: A falta de referências é uma coisa que me assusta muito. Esta nova geração tem zero referências do passado, como se ele não existisse. Quando tens uma geração que não tem referência de passado, tudo  o que foi de mal vai voltar a acontecer e as próprias referências culturais são algo que me dão ataques de pânico. Eu penso “se isto existe é porque tem audiência e se tem audiência é porque há milhares de pessoas que acham que isto é legal”. Eu vivo em pânico e irritação quase 90% do tempo. A minha geração já começou a ser assim...acho que a geração anterior, a última grande geração de coragem, de força de vontade...a minha geração já começa a se queixar de tudo e a querer tudo de mão dada...

Acho assustadora a falta de cultura e o louvor à falta de cultura. No  meu tempo havia o burro da turma, que era um gajo popular mas toda gente sabia que era burro. As pessoas o achavam engraçado e só. Hoje o burro da escola é o gajo mais legal, é o gajo que diz “Nunca li um livro e não quero saber de política” e é aplaudido por isso. 



Agradecemos ao Rui Cruz pela disponibilidade e gentileza em atender ao convite do Toca para essa entrevista, que aconteceu em Lisboa. Espero que vocês também tenham gostado da prosa!

Beijos,

Mariana Mendes 💖






¹ (“Without Feathers”, lançado no Brasil pela editora L&PM Pocket, com o título “Sem Plumas”. Trata-se de uma coleção de histórias curtas e duas peças, Morte e Deus. O autor traz neuroses, referências à psicanálise, versões humorísticas de histórias clássicas, obsessão com a morte e algum nonsense.)

² Existe, em Portugal, uma legislação que envolve a atuação da arqueologia, como movimentação de bens arqueológicos em território nacional, intervenções para edifícios tombados, etc e segundo alguns arqueólogos locais, as empresas são obrigadas a ter laudos de arqueologistas sobre a existência ou não de objetos arqueológicos, o que acaba encarecendo e tardando as obras. Assim, algumas empresas pagam propina para que o arqueólogo “não encontre nada” e elas possam fazer as obras mais rapidamente.

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